Barroco paulista
O renascimento do barroco paulista
Resgate
de obras, artistas e documentos amplia o conhecimento sobre as expressões desse
estilo no estado
| MARÇO 2017
Igreja do Carmo, em São Paulo: pintura de Jesuíno
do Monte Carmelo na nave…
O trabalho integrado de pesquisadores acadêmicos,
restauradores profissionais e especialistas de órgãos públicos e de empresas
tem resultado na descoberta de obras, autores e documentos do barroco paulista
que permaneceram encobertos, desconhecidos ou guardados por mais de um século.
Os desenhos, as formas e as cores originais emergem à medida que igrejas são
restauradas e pinturas mais recentes removidas, revelando obras de maior valor
artístico e histórico. Os achados estão redimensionando o valor das expressões
paulistas desse estilo de arte, mais visível e pujante nos estados de Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Caracterizado por formas rebuscadas
e uma intensa religiosidade, o barroco marcou os primeiros três séculos da
colonização do Brasil pelos europeus.
Como consequência de um trabalho iniciado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), reapareceram em
2011 as pinturas de 1796 e 1797 do padre santista Jesuíno do Monte Carmelo
(1764-1819) nos forros da capela-mor e da nave da Igreja da Venerável Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo, no centro da cidade de São Paulo. O
escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945), pouco antes de morrer, alertou
sobre a provável existência da pintura na área central da nave, que estava
encoberta. Agora exposta, a imagem original mostra Nossa Senhora cercada por
anjos, nuvens e, nas bordas do teto, carmelitas de 2,20 metros (m) de altura.
Mário de Andrade nunca soube por que a pintura original havia sido encoberta.
A historiadora de arte Danielle Pereira,
pesquisadora do grupo Barroco Memória Viva do Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Paulo, pensa ter descoberto o que
o escritor paulista não sabia. Nos últimos sete anos, ela peregrinou por
arquivos de igrejas e de órgãos públicos, examinou cerca de 22 mil páginas de
600 livros antigos e encontrou documentos inéditos sobre as pinturas e seus
autores. Com base nos documentos, ela confirmou que a obra de Jesuíno não foi a
original, mas a terceira – os forros com as duas anteriores teriam sido
removidos –, e encontrou o motivo da troca das pinturas, que intrigava Mário de
Andrade. “Os carmelitas mudavam a ornamentação de toda a igreja para seguir os
gostos da época e não ficarem atrás das igrejas de outras ordens religiosas,
não importando os custos”, apurou Danielle. “A ideia de que o barroco paulista
era pobre e ingênuo é descabida.”
…e o Cristo crucificado, ambos do século XVIII
Autor de 20 livros sobre arte brasileira, o artista
plástico e historiador de arte Percival Tirapeli, coordenador do grupo de
pesquisa sobre o barroco da Unesp, observa o teto da igreja do Carmo e conta:
“Foram quatro anos removendo com bisturi as camadas recentes de tinta”. Atrás
do altar está a obra Senhor morto, de 1746, de madeira, também
restaurada, de autoria desconhecida, que ele considera “uma das esculturas mais
belas do barroco paulista”. A quase 30 quilômetros (km) do centro da capital,
na capela de São Miguel Arcanjo, uma das mais antigas do estado, erguida em
1622, foi encontrada uma rara pintura em perspectiva do altar que permaneceu
escondido durante décadas por outro altar de madeira, construído cerca de 150
anos depois.
Obras de arte inesperadas apareceram também na
matriz de Nossa Senhora da Candelária de Itu, a 101 km da capital, a maior
igreja barroca do estado de São Paulo, construída em 1780, em restauração desde
2001. Por indicação do músico Luís Roberto de Francisco, pesquisador do Museu
de Música da cidade, as equipes de restauração resgataram seis pranchas de
madeira retratando uma das cenas do calvário de Cristo. Encobertas por uma
camada de cal, eram provavelmente originais do forro do coro da igreja e tinham
sido usadas como proteção de um relógio da torre. Foram feitas por Jesuíno do
Monte Carmelo – e não se tinha conhecimento delas.
Em 2015, as equipes de restauração encontraram
pinturas em azul nas paredes da capela-mor da matriz de Itu, antes cobertas por
tinta de dezenas de anos. Havia uma data, 1788, e uma assinatura que revelou,
dessa vez, um autor desconhecido, Mathias Teixeira da Silva, sobre o qual pouco
se sabe. As pesquisas sobre esse artista, conduzidas pelo historiador do Iphan
Carlos Gutierrez Cerqueira, levaram à identificação do escultor Bartolomeu
Teixeira Guimarães (1738-?) como autor do monumental altar-mor, com 12 m de
altura por 6 m de largura. Emergiram também indicações da colaboração entre
Guimarães e José Patrício da Silva Manso (1753-1801), autor da pintura do forro
e mestre de Jesuíno, indicando as conexões entre artistas e suas obras. Jesuíno
também fez pinturas em outras três igrejas de Itu, a do Carmo, a da Nossa
Senhora do Patrocínio e a do Bom Jesus.
Ideias renovadas
“Estamos desfazendo o preconceito de que o barroco paulista era pobre e inexpressivo”, diz o restaurador Júlio Moraes, proprietário de uma empresa de restauração. Ele começou a trabalhar com o barroco paulista em 1990, quando restaurou a capela de 1681 de um sítio em São Roque, próximo à capital paulista, doado por Mário de Andrade ao Iphan. “Existem de fato muito mais obras e artistas do que se pensava”, acrescenta, confirmando os alertas de seus professores do curso de artes plásticas na Universidade de São Paulo (USP) em meados da década de 1970. Em 2001, com sua equipe, Moraes restaurou a pintura do teto da capela-mor da Candelária de Itu, para onde voltou em 2014 para cuidar de outras obras.
Na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em
São Paulo, o altar de 1792 voltou a reluzir após o restauro
“Esta entrada estava toda pintada de cinza”, diz
Tirapeli ao ingressar na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no Largo do
São Francisco, capital, construída entre 1676 e 1787. “Tudo estava caindo.”
Fechada por muitos anos, a igreja foi em boa parte restaurada com recursos de
empresas (Lei Rouanet) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Quem a visitar pode agora ver
as portas de cores vivas e um altar reluzente, concluído em 1792, com um
douramento “sem equivalente em nenhum outro lugar do Brasil”, diz. As paredes
da capela-mor exibem 10 pinturas religiosas refinadas da primeira metade do
século XVIII, com 2,2 m de altura, até alguns anos atrás cobertas por resíduos
que as enegreciam. Segundo ele, essas pinturas foram produzidas em ateliês
portugueses e “atestam a influência italiana no barroco brasileiro”, além de
indicarem o poder de compra dos religiosos.
Danielle identificou 56 pintores que trabalharam em
igrejas de São Paulo, Itu e Mogi das Cruzes entre 1750 e 1827. Como resultado,
o grupo dos artistas paulistas mais conhecidos – Jesuíno do Monte Carmelo e
José Patrício da Silva Manso – ganha o reforço de outros, como Lourenço da
Costa de Macedo, Antonio dos Santos e Manuel do Sacramento, que pintaram os
forros do vestíbulo, da capela-mor e da nave da igreja da Ordem Terceira do
Carmo em Mogi das Cruzes, como detalhado em um artigo publicado em 2016 na
revista Caiana, do Centro Argentino de Investigadores de Arte. Danielle
identificou também uma rara pintora, Miquelina Constância das Chagas, que fez a
douração dos seis altares da igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São
Paulo, no século XIX. Se as obras e as trajetórias profissionais dos artistas
barrocos estão mais claras, os detalhes pessoais, como as datas de nascimento e
morte, ainda são incertos.
A restauradora Ana Cristina Jacinto recupera o São
João Evangelista da igreja da Candelária em Itu
Em outro estudo do grupo da Unesp, o arquiteto
Rafael Schunk resgatou dois artistas pouco conhecidos, o frade português
Agostinho da Piedade (1580-1661) e seu aluno Agostinho de Jesus (1600-1661),
que viveram e trabalharam no Vale do Paraíba. Schunk considera Agostinho de
Jesus “o primeiro artista brasileiro”. Depois dele é que vieram os outros mais
conhecidos do barroco brasileiro, Antônio Francisco Lisboa (1738-1814) – o
Aleijadinho – e Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), em Minas Gerais, e Valentim
da Fonseca e Silva (1745-1813), no Rio de Janeiro.
A historiadora de arte Maria José Passos,
professora da Universidade Cruzeiro do Sul, identificou mais obras barrocas do
que esperava ao percorrer 79 igrejas de 47 cidades do estado de São Paulo como
parte de seu doutorado, concluído em 2015 na Unesp (ver
mapa). Uma
dezena de esculturas religiosas com pelo menos 200 anos de idade estava
guardada sem identificação em armários, sacristias ou depósitos. Outras se perderam.
“A maior parte dos bens móveis não está devidamente catalogada”, ela observou.
Maria José ficava intrigada toda vez que via
esculturas que destoavam do conjunto, com olhos de vidro, principalmente no
Vale do Paraíba, embora ainda fossem barrocas. A pesquisadora da Unesp e
restauradora Cristiana Cavaterra tinha a resposta: muitas dessas obras tinham
sido feitas pelo artista italiano Marino Del Favero (1864-1943). Favero se
mudou para o Brasil aos 28 anos e abriu um ateliê de esculturas sacras e altares
no centro da cidade de São Paulo. Ele anunciava seu trabalho em jornais, vendia
por catálogo e recebia encomendas de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul, empurrando uma parte do barroco para o começo
do século XX. Os historiadores de arte afirmam que o barroco termina
formalmente com A última ceia, pintada por Costa Ataíde no
Colégio do Caraça, em Minas, em 1828.
Na
capela-mor da Candelária, altar, teto e paredes foram restaurados…
Durante 50 anos, estima-se que o artista italiano
tenha produzido 300 altares, como os da matriz de Pindamonhangaba e de uma
capela em São Luiz do Paraitinga, ambas em São Paulo, e em uma igreja de Maria
da Fé, em Minas, além de cerca de mil esculturas de portes variados. “Mesmo com
uma produção em escala industrial, ele se considerava artista e zelava pela
qualidade do que produzia com sua equipe”, diz Cristiana. “Seu gosto pessoal e
a influência dos mestres italianos prevaleceram em sua obra.”
Os trabalhos e descobertas mais recentes indicam
que São Paulo produziu menos obras do que estados como Minas, Rio ou Bahia. As
paredes das igrejas da capital e do interior paulista eram predominantemente de
taipa de pilão, com uma decoração despojada, enquanto nos outros estados eram
de pedras e ricamente adornadas. “As paredes brancas contrastam com um altar
colorido”, diz Moraes. “Não era possível cobrir tudo de ouro, mas às vezes
usavam prata, que vinha da Bolívia, como em Itu.”
Como as cidades paulistas – principalmente a
capital – cresceram em ritmo mais acelerado a partir do século XIX, a arte
barroca destoa da paisagem urbana, no olhar do artista plástico Emanoel Araújo,
diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo: “São Paulo tem um lado espartano”.
Como diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo entre 1992 e 2002, ele
promoveu exposições que ampliaram a visibilidade do barroco brasileiro. Em
1998, a mostra O universo mágico do barroco brasileiro, com a curadoria
de Araújo, expôs 364 peças de 1640 a 1820 no Centro Cultural Fiesp.
…mas
o trabalho continua no arco da entrada
Segundo Tirapeli, as exposições e a publicação de
livros sobre o barroco (ver Pesquisa FAPESP no 90) nos últimos anos renovaram o
interesse dos especilialistas e dos órgãos públicos sobre a necessidade de
restauração artísitca das obras de arte da época do Brasil Colônia. Em
consequência dessa mobilização, 10 igrejas do estado resgataram as cores e o
brilho originais, como a matriz de Itu, as igrejas da Ordem Terceira do Carmo e
da de São Francisco, a da Boa Morte e a de Santo Antônio, na cidade de São
Paulo; a da Candelária, em Itu; a basílica antiga de Nossa Senhora da
Aparecida, em Aparecida; e a matriz de Jacareí.
“Já se perdeu muito, enquanto o barroco paulista
era menos valorizado”, diz o historiador da arte Mozart Costa, professor de
restauração artística da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da
Universidade Cidade de São Paulo. Cerqueira, do Iphan, leu relatos sobre 45
capelas rurais paulistas do século XVII, procurou-as, mas encontrou apenas
duas. “Chegou o momento de investirmos intensamente na restauração de obras
artísticas do mesmo modo que o Iphan tem investido na restauração da
arquitetura das igrejas há 80 anos”, diz ele. “Há muito ainda por fazer.”
Embora o interesse pelo barroco paulista tenha sido
revivido, falta investimento. Nas paredes de um corredor da igreja da Ordem
Terceira do Carmo estão 19 quadros de Jesuíno do Monte Carmelo quase totalmente
cobertos por resíduos pretos. A restauração de cada um custaria cerca de R$ 50
mil e, como não há dinheiro, não há data para começar.
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Projeto
Autoria das pinturas ilusionistas do estado de São Paulo: São Paulo, Itu e Mogi das Cruzes (nº 13/04082-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Percival Tirapeli (Unesp); Bolsista Danielle Manoel dos Santos Pereira; Investimento R$ 168.710,49.
Artigo científico
PEREIRA, D. M. S. Pintura setecentista
na igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes
(SP-Brasil). Caiana
– Revista Virtual de Historia del Arte y Cultura Visual. v. 8, n. 1, p.
105-20, 2016.
Livro
TIRAPELI, P. Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba. São Paulo: Editora Unesp/Sesc, 2014. 250 p.
TIRAPELI, P. Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba. São Paulo: Editora Unesp/Sesc, 2014. 250 p.
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