Capital do hemisferio sul
Os novos arranjos
da metrópole
Dados populacionais revelam uma
periferia mais heterogênea na Grande São Paulo, com proximidade entre as
classes média e baixa, mas áreas de elite ainda mais exclusivas
MÁRCIO FERRARI | ED. 228 | FEVEREIRO
2015
Fotos de © LÉO RAMOS
No centro de São Paulo, um prédio
ocupado por sem-tetos (ao fundo) próximo ao metrô, cujos vidros refletem um
edifício recém-reformado: a cidade mudou menos do que se previa e de modo
diferente
Alguma coisa aconteceu neste século nos
padrões de segregação residencial da Região Metropolitana de São Paulo, que não
era prevista no fim do século passado. A metrópole continua intensamente
segregada, mas não seguiu a tendência esperada de polarização de espaços e
estrutura social. Se cresceu a exclusividade das áreas habitadas pelas elites,
o restante da cidade experimentou um processo de alteração que a tornou mais
heterogênea. “A hipótese da polarização social contínua, expressa em metáforas
famosas como ‘cidade partida’, não se provou em São Paulo”, diz Eduardo
Marques, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e
pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de
Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. “A dinâmica da
estrutura social realmente apontou para a polarização ocupacional nos anos
1990, mas isso foi plenamente revertido nos anos 2000. Em relação ao que se previa,
a metrópole mudou menos e de modo diferente.”
O quadro que se desenha confirma um
diagnóstico surgido nos anos 1990 sobre as grandes tendências urbanas
relacionadas às transformações do capitalismo ocorridas desde a década de 1970,
como a formação de um grupo social de super-ricos e a criação de bolhas imobiliárias
que abrigariam núcleos de comandos dos negócios. No entanto, os efeitos da
desindustrialização iniciada no período – que seriam o esvaziamento de
atividades intermediárias na escala produtiva, em particular a fordista (modelo
de produção industrial em massa) – não se verificam totalmente no estudo das
mudanças ocorridas nas últimas décadas em São Paulo.
a presença relativa da indústria se
reduziu em favor de comércio e serviços – setor que gerou 800 mil postos de
trabalho na década de 2000 na Grande São Paulo –, mas não por esvaziamento da
atividade, como em outros países, e sim porque o setor se deslocou para outras
regiões, como as macrometrópoles de Campinas e São José dos Campos. Além disso,
a atividade fordista se insere ainda como a classe mais numerosa (trabalhadores
manuais qualificados) da metrópole no Censo de 2010, embora “em queda associada
ao crescimento dos profissionais e das camadas médias”. O impacto no mapa da
segregação social é importante: as classes que mais cresceram proporcionalmente
tenderam a se desconcentrar na primeira década deste século, enquanto as que
apresentaram redução (a dos mais ricos) aumentaram sua exclusividade.
Marques chegou a
essas conclusões por meio de um estudo que se utilizou de dados dos censos de
1991, 2000 e 2011. Um artigo sobre o assunto, intitulado “Estrutura social e
segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000”, foi publicado em
dezembro na revista Dados, do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), e será um dos capítulos do livro São Paulo 2010: Espaços,
heterogeneidades e desigualdades na metrópole, que tem lançamento
previsto para maio pela Editora Unesp.
Na distribuição
habitacional da metrópole, o estudo detecta um padrão de evitação social,
verificado por índices de dissimilaridade e de Moran (medidas de segregação
residencial) e distribuição proporcional de classes na região metropolitana.
“Não é só um grupo que se isola, embora as elites realmente sejam os grupos
mais segregados, mas é uma característica da própria estrutura da segregação”,
diz Marques. “Os dados sugerem de forma bastante eloquente que, quanto maior a
distância social entre classes, maior a segregação, sugerindo um padrão de
evitação nas escolhas residenciais dos grupos que podem pagar preços mais altos
pela terra.” A conclusão vai ao encontro de estudos antropológicos e
sociológicos que tratam de temas como o uso de espaços públicos nas cidades,
condomínios fechados e ascensão dos shopping centers.
© LÉO RAMOS
Casas de Paraisópolis com
prédios do Morumbi ao fundo: enclave de trabalhadores manuais no
território da elite
Além de muito intensa, a segregação é
também fortemente hierárquica, como evidenciam os dados medidos por meio do
índice de dissimilaridade. “O grau de diferenciação é perfeitamente ordenado
por classe”, diz Marques. Essa progressão faz com que a dissimilaridade seja
baixa entre qualquer grupo e os grupos contíguos a ele, mas cresce muito para
grupos distantes deles na estrutura. Outra dedução significativa do livro a ser
lançado em maio, contida em capítulo de Danilo França, é que a segregação é não
só socioeconômica, mas também étnico–racial, de forma superposta à primeira,
visto que quando se consideram simultaneamente classes sociais e cor da pele
surge uma hierarquia combinada.
Um fenômeno aparentemente paradoxal, e
um dos fatores de heterogenização das periferias, já estudado na literatura
como “proximidade física e distância social”. Foi o que ocorreu, por exemplo,
em consequência da disseminação, nas áreas periféricas, dos condomínios
fechados – já em si mesmos heterogêneos, por servir a camadas de renda variável
entre as do topo e a classe média. Na Grande São Paulo, o fenômeno impactou
grandemente áreas periféricas como as dos municípios de Barueri, Cotia e
Santana de Parnaíba.
Na escala dos índices de
dissimilaridade, as distribuições de espaço da classe média estão mais próximas
daquelas das classes inferiores, reforçando a constatação de um tecido
misturado na Grande São Paulo, exceto pela segregação intensa das classes no
topo da estrutura. Já na comparação geral, as elites apresentam os mais altos
índices de segregação e as classes médias apresentam os menores.
Essa é uma evidência das limitações da
hipótese de polarização social: os efeitos locais dos processos globais nem
sempre são os mesmos. “No Brasil, após a reestruturação dos anos 1990, este
século trouxe o retorno do emprego, o crescimento do trabalho formal e a
melhoria dos salários”, diz Marques. “Isso, somado às mudanças nos padrões de
crescimento demográfico e ao investimento estatal em infraestrutura,
acompanhado de uma maior distribuição da atividade imobiliária, contribuiu para
a heterogenização da periferia.” O pesquisador observa que o período estudado é
anterior ao programa federal Minha Casa, Minha Vida, que produziu
aproximadamente 130 mil moradias na Região Metropolitana de São Paulo desde
2009.
Como parâmetro estatístico, Marques
utilizou a classificação EGP (acrônimo de seus criadores, Erikson, Goldthorpe e
Portocarrero) adaptada para o caso brasileiro. Trata-se de um agrupamento por
categorias ocupacionais que permite observar oscilações “mais suaves e
contínuas e duráveis” do que aquelas baseadas exclusivamente em escolaridade ou
renda, por exemplo. Outra vantagem da classificação EGP é permitir um terreno
comum para debates internacionais. Uma das atividades do CEM é mantida por um
grupo de pesquisa comparativa de padrões internacionais de governança e
políticas públicas em São Paulo, Paris, Londres, Cidade do México e Milão. O
CEM tem, formalmente, duas sedes: uma na FFLCH-USP e outra no Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento (Cebrap).
© LÉO RAMOS
Esqueleto de prédio na Vila
Leopoldina, zona oeste de São Paulo, em primeiro plano. Ao
fundo, prédios novos que surgiram durante o boom imobiliário dos
primeiros anos deste século
Por essa classificação, aquilo que o autor
classifica como espaços médios-baixos misturados, característicos da
heterogeneidade observada nas regiões periféricas, apresenta em média a
residência de 71,6% da população pertencente às classes de trabalhadores
manuais (qualificados e não qualificados), trabalhadores manuais de rotina de
nível baixo e técnicos e supervisores. A renda relativa nessas áreas estava
entre média e baixa. A população contava com elevada presença de pretos e
pardos (40%), vivendo predominantemente em casas (9% em apartamentos) com
condições de infraestrutura próximas da média da metrópole (dependendo do
indicador, até superiores).
Na configuração
geográfica da Grande São Paulo revelada pelo Censo de 2010, os espaços
médios-baixos-misturados se situam nas regiões periféricas, “embora com
descontinuidades espaciais e substancial presença de espaços médio-misturados,
em especial na zona leste do município de São Paulo”. O centro histórico surge
como espaço predominantemente médio-misturado, o que evidencia uma
popularização da região em relação aos dados do Censo de 2000. A mancha de
elite no mapa do centro expandido se situa a sudoeste do centro histórico – a
região de Higienópolis, Pinheiros, Jardins, Morumbi, entre outros bairros –,
tendo agregado, de 2000 para 2010, regiões na direção do ABC paulista,
expansões do Morumbi e a Vila Leopoldina, que experimentou um boom imobiliário neste século.
Nessa região do sudoeste localizam-se,
contudo, dois enclaves de trabalhadores manuais no território da elite, as duas
únicas favelas de grande porte localizadas dentro dos limites do centro
expandido, Paraisópolis a oeste e o complexo Heliópolis-São João Clímaco a
sudeste. Num fenômeno oposto, as regiões do Tatuapé e de Santana são também
espaços de elite de pequenas dimensões a leste e a norte do território de
concentração da elite. E os centros de Guarulhos e Mogi das Cruzes, a nordeste
e a leste, respectivamente, aparecem como médios-altos. Em Guarulhos, houve uma
popularização de áreas não muito distantes do centro.
O estudo de Marques
se insere numa pesquisa mais ampla e de longa duração do CEM. O livro previsto
para maio dialoga com São Paulo: Segregação, pobreza
e desigualdade, organizado por Marques e pelo economista Haroldo
Torres, lançado em 2005 pela editora Senac. Baseado em dados do Censo de 2000,
esse volume, como o próximo, é composto de capítulos coordenados entre si sobre
temas como crescimento demográfico, segregação, condições de acesso a políticas
públicas, entre outros. Agora foram incluídas também as dimensões associadas ao
mercado de trabalho, à raça e à mobilidade urbana.
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